segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Eu, Samurai (parte 1)

MCCCXLVII Anno Domini. 
Sentado no porão uma caravela clandestina, observo pela pequena janela a tormenta que torna o mar enfurecido; ondas várias vezes maiores que nossa embarcação balançam-na de forma assustadora.
Eu era um Nobre, Conde de um próspero feudo, mas, ao contrário da imensa maioria da nobreza, eu me preocupava mais com a defesa de minhas terras que com as frivolidades dos hipócritas com suas perucas; eu mesmo patrulhava minhas terras, acompanhado de homens da minha confiança.
Sempre me considerei um bom espadachim; meus homens reconheciam minha habilidade e fizeram dela uma lenda naquelas terras. Eu possuía, entre meus empregados, um homem do oriente chamado Nobutada; culto, sempre tínhamos longas conversas sobre os mais variados assuntos e um dos assuntos que me eram mais fascinantes  era sobre os guerreiros de sua terra, os Samurais, cuja honra era elevada acima de qualquer outro valor; eram homens de habilidades exímias de combate com as mais variadas armas; eram homens que dedicavam suas vidas inteiras às suas funções e eram educados para tal desde a mais tenra idade. Nobutada dizia ser um agricultor de um pequeno vilarejo, mas eu sabia que ele detinha habilidades de combate; imaginei que aquela seria uma terra hostil e que qualquer pessoa deveria possuir tais habilidades.
Tempos difíceis chegaram: a peste negra dizimou quase todo o velho mundo e minhas terras não ficaram imunes à peste. Nem minha família... Um cheiro pútrido se espalhava por toda a extensão do meu pequeno feudo: o cheiro da morte! A peste avançou impiedosa e, num momento de desespero, juntei o que havia restado de meu exército, minhas coisas e embarcamos no navio recém construído (o que eu imaginei nos manter longe dos ratos que traziam a peste) de um Nobre cujas terras faziam fronteira com as minhas, porém não sobrevivera à maldição que caía sobre nós.
Sem a menor noção de onde ir, apenas com o desejo de fugir de toda aquela desolação, alcançamos alto mar sem falarmos praticamente nada; foi quando Nobutada veio a mim:
- Para onde iremos, meu Senhor?
Por vários instantes eu tentei pensar em alguma resposta, mas tudo o que eu conhecia tinha se tornado morte e tristeza; eu nunca havia saído de minhas próprias terras. Foi quando, fitando a perplexidade nos olhos rasgados daquele homem de baixa estatura e sotaque engraçado, tive um lampejo:
- Consegue nos guiar até sua terra natal?
- Nobre Conde - prosseguiu ele após longa pausa - não sou um homem do mar, mas o navio que me levou até vossa terra passou meses no mar; sei que aportamos nas Índias e posteriormente na terra onde há homens negros; mas não saberia dizer por onde ir. 
Aquela descrição havia me dado ideia de uma rota; indaguei o Capitão do navio (que se aliou a mim quando fugimos da peste; minha fortuna seria necessária para sairmos dali) se ele conhecia a rota da seda e este anuiu com apenas com um gesto de cabeça, mas com segurança em seu olhar.
- Iremos para o Oriente! - Eu disse determinado.
De fato, foram longos meses a bordo: parávamos para repor os suprimentos; ficávamos alguns dias em terra firme aguardando o tempo melhorar; e navegávamos por mares sem fim...
Chegamos à uma pequena ilha que Nobutada reconheceu como sendo sua terra natal numa manhã de inverno cuja neblina era muito mais intensa do que eu conhecia em minhas terras. Eu tinha plena noção que seríamos todos (exceto Nobutada) estranhos numa terra de costumes e língua estranhos.
Dei parte do dinheiro que me havia sobrado ao Capitão da caravela para que ele rumasse junto com alguns marinheiros para onde pudesse ganhar sua vida e minha comitiva agora era composta por mim, oito soldados, Nobutada e mais duas ou três famílias de meu feudo. Apesar de ser um lugar onde tudo era sereno, o caminho até o vilarejo de Nobutada foi muito tenso, pelo menos pra mim: eu ficava imaginando o que faria se fôssemos atacados por aqueles guerreiros exímios dos quais o oriental sempre falou; mas a ideia de morrer pela espada me soava muito mais digna do que pela peste.
Chegamos, fomos bem recebidos e lutamos muito para conseguirmos aprender o idioma estranho daquele povo; a paciência de Nobutada nos foi providencial e não demoramos muito para compreender os rudimentos da língua e dos costumes. Notei que as mulheres pouco falavam com os homens e temiam serem vistas junto a eles; as que eram casadas, andavam sempre atrás de seus maridos e de cabeça baixa; notei também que alguns moradores de idade mais avançada faziam uma reverência quando Nobutada passava e este ficava visivelmente encabulado com isso.
- E os Samurais? - perguntei a ele. - Onde vivem?
- Não muito longe daqui, mas não é sábio procurá-los.
- Achei que fossem guerreiros honrados...
- E são! Justamente por isso eu não posso procurá-los. Nunca mais!
Foi quando percebi a situação: Nobutada deveria ser um deles! Mas o que teria feito de tão grave a ponto de ter que se afastar definitivamente deles? Não deveria ser algo ruim, pois ele ainda detinha o (profundo) respeito dos anciões. Tocar nesse assunto era inútil, pois ele sempre desviava o assunto para outro lado.
Eu e meus soldados mantínhamos nossa rotina de treino, que era sempre observada detalhadamente pelo oriental; certa vez, enquanto treinava, observei anciões se aproximando de Nobutada e conversando discretamente com ele; quando eles perceberam que eu os observava, fizeram-me uma reverência e se retiraram.
- O que eles disseram? - perguntei a Nobutada.
- Eles diziam que sua luta é estranha; eu disse a eles que o Conde era o Xogum de sua terra e por isso eles demonstraram respeito; sabem que vocês podem nos defender se for preciso.
- E será preciso?
- Não sei dizer, meu senhor, quando; mas este dia chegará!
Algum tempo depois, descobri que o termo Xogum referia-se ao general que comandava um exército; o meu exército, apesar de composto por homens leais, era muito pequeno...

*   *   *

Hiromi era uma bela moça do vilarejo, a qual eu sempre via andando ao lado de outra mulher mais velha, a qual deduzi ser sua mãe. Ambas eram de modos muito recatados e dificilmente conseguia fitar-lhes as feições, pois sempre estavam de cabeça baixa. Um sorriso era algo que eu nunca havia visto partindo delas. A este ponto, uma curiosidade anormal (e certa lascívia, confesso) já havia se apoderado de minha mente e eu passei a segui-las discretamente nas caminhadas que faziam para buscar água ou colher alimentos. Numa dessas ocasiões, ao passar por um campo, vi um homem portando uma espada curva treinando movimentos rápidos e precisos; a espada era, visivelmente, uma extensão de seu corpo; eu tentava imaginar um inimigo invisível com o qual ele estivesse lutando, mas para cada ataque que eu imaginava, ele desferia um golpe que seria fatal ao inimigo. Percebi que havia perdido de vista as mulheres e voltei a atenção novamente ao espadachim que agora punha-se em posição de meditação; resolvi aproximar-me e, para minha surpresa, vi que aquele homem era Nobutada!
Ele abriu os olhos lentamente e permaneceu imóvel observando eu me aproximar.
- Eu sabia que você era um deles! - exclamei.
- Hai - respondeu ele imóvel.
- Me daria a honra de um combate? - perguntei incerto da resposta.
- Temos estilos muito diferentes de combate, meu Senhor - respondeu sem ainda se mexer.
- Até onde entendi, quem detém uma posição importante aqui é você e não eu; por que ainda me trata por Senhor? Meu título de nada vale aqui.
- Hai! Seu título de nada vale, mas eu demonstro respeito pelo homem que me acolheu em suas terras; ao homem que proporcionou um lar e que me tratou com dignidade. Ninguém na sua terra me tratou  melhor do que trataria a um cão.
Fiquei sem palavras.
- Eu disse tudo isso aos anciões - prosseguiu ele - e disse também que uma doença terrível devastou vossas terras e que o nobre Conde é um homem honrado.
Ele levantou-se  lentamente, deu alguns passos e pegou duas espadas de madeira que estavam no chão; me entregou uma delas com uma reverência típica dos orientais e disse:
- Será uma honra para mim, Karaus San!
Meu nome é Klaus, de origem nórdica; os orientais tem grande dificuldade em pronunciar fonemas com o "L" intercalado...
Abri meu cinturão, tirando minha espada de aço e tentei me acostumar à empunhadura daquela arma de treino; seu peso era muito pequeno, seu cabo desconfortável e seu manejo desajeitado; sem falar no tamanho que, comparada às espadas de meus ancestrais, não passa de uma adaga.
Com um aceno de cabeça, entendi que ele estava pronto e eu avancei: um, dois, três ataques enérgicos defendidos e um contra-ataque certeiro nas minhas costelas; se fosse uma situação real, seria morte certa para mim.
- O Conde é muito rápido, mas eu o vi lutar muitas vezes; aprendi vosso estilo.
- Percebo...
Tentei me lembrar dos movimentos que o vi fazer momentos antes e tentei me adaptar a eles, mas novamente não fui rápido o suficiente em deter o ataque de Nobutada.
- Eu gostaria de aprender sua técnica! - disse a ele enquanto me levantava - percebo que as histórias que você contava sobre os Samurais eram a mais pura verdade!
- Hai!
Foi quando percebi que Hiromi e a outra mulher estavam atrás de nós observando silenciosamente; com um sinal de Nobutada, elas se aproximaram:
- Esta é Sayaka, minha irmã - disse apresentando a mulher mais velha - e Hiromi, filha de um grande Samurai morto em combate.
Cumprimentei-as à moda oriental e, pela primeira vez, nos longos meses que ali estávamos, vi um sorriso florescer naquele rosto de olhos pequenos.
O tempo passava, eu e meus homens procurávamos aprender as novas técnicas, mas era difícil apagar dos músculos, a memória de anos de combates; mas estávamos imersos numa cultura diferente, o que facilitava um pouco as coisas: já nos vestíamos como eles e aprendemos a apreciar sua comida; alguns de meus homens já haviam até conseguido novas famílias. A verdade é que a paz que desfrutávamos naquele lugar era tamanha que nos fazia lembrar muito pouco do que fugimos no velho mundo.
Numa manhã, resolvi seguir Sayaka e Hiromi para além do campo onde costumava treinar; a jovem oriental começava a tornar-se um doce mistério para mim, com suas maneiras muito retraídas e seu silêncio quase total.
Elas chegaram a um lugar onde havia um pequeno riacho de água cristalina; Sayaka dirigiu-se para o que eu acreditei ser um pomar e Hiromi ajoelhou-se quase liturgicamente à beira do riacho; tratei de esconder-me na vegetação e observei-a no ritual que percebi ser seu banho: soltou o cabelo, que era longo, liso, pesado e de um brilho encantador; fiquei imaginando qual o cheiro teria aquele formoso cabelo. 
Todos os movimentos que ela fazia pareciam seguir um meticuloso ritual; observei-a abrindo parte do quimono e desnudando o ombro direito. Ela molhou no riacho um outro pedaço de tecido e se lavava com uma delicadeza ímpar; repetiu o mesmo processo com o outro ombro, porém foi quando eu escutei alguma movimentação próximo dali.
Eu já usava em minha cintura uma katana e já havia aprendido muito do Bushido que era muito mais do que um manual de combate: era o código de conduta daqueles guerreiros; me aproximei de Hiromi que continuava seu ritual até ser interrompida pelo grito de sua mãe.
- Onde ela está? - perguntei a ela, ao que ela me apontou a direção.
- Não saia daqui! Se esconda!
Ela nada respondeu; apenas abaixou a cabeça e dirigiu-se a uma grande pedra que havia ali.
Corri na direção de onde vinha o grito e vi Sayaka correndo em minha direção:
- Ronin! Ronin! - passou por mim sem parar e dirigiu-se à mesma pedra a qual Hiromi estava.
Respirei fundo e tentei limpar a mente e me preparar para o combate; assumi a posição clássica e logo vieram dois homens correndo, também com espadas empunhadas. A luta começou e logo percebi qual deles era o mais fraco; concentrei mais atenção no mais forte mas sem descuidar do outro; duelamos não sei dizer por quanto tempo até que amputei uma das mãos do mais fraco com um golpe poderoso e certeiro cuja continuidade foi a minha lâmina atravessando o abdômen do mais forte. 
Antes mesmo de respirar aliviado, senti o ardor e a lâmina fria da adaga do mais fraco me rasgando as costas! Me joguei  para frente, para sair do alcance do agressor e vi quando Nobutada e 3 de meus homens chegaram e rapidamente eliminaram o oponente.
Lembro do cheiro ácido do sangue. Do meu sangue! Lembro de sentir minhas forças se esvaindo e do choro de Hiromi que me olhava por sobre o ombro de Sayaka que lhe abraçava. Depois o frio e o silêncio.

(continua)